segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Narciso Miranda

A volta mantem-se a sua cabeça, torta, apesar do dia que acorda e que retorna, todos a sua rotina. Esta é a de Narciso Miranda, que é mistura de raças, semblante da beleza e do destino, homem nascido em berço de oiro e diversas vezes massajado na sua chaise-long de carvalho. Vê horas em relógios de marca e acelera em viaturas do futuro. Hoje acorda com olheiras, que criam papos sob os seus olhos verdes. A noite tinha sido longa, estamos no inverno, lembremo-nos, e da natural necessidade de aquecerem-se os pés, com alguém, num micro aquecedor debaixo de lençóis. A noite tinha sido acompanhada, três micros aquecedores aqueciam aquela cama, apesar da senhora Miranda encontrar-se em casa, supostamente tomando conta dos seus dois filhos. Naquela noite, Narciso acompanhou-se de material diferente, inteligentes no seu jogo, que em “check-mates à pastor” vão derrubando estes reis, que naquele tabuleiro nunca poderão contar com a força e versatilidade de uma rainha. Cada um desempenha um papel neste jogo, de jogadas calculadas e premeditas, crivadas de armadilhas, onde peões são sacrificados na primeira fila desta guerra entre diferentes. “Tenho reunião as 10”, exclama tonto, enquanto que os escoceses vão dançando na sua cabeça, e o terrível Tanqueray tomando conta do seu estomago, envolvendo-o numa manta de acidez. Para a cabeça terá que riscar sobre a mesa o pó da morte, branco, com a nota de 5 euros, gasta e dobrada. Chega a pensar nas diversas pessoas que a pegaram e na humildade de cada uma, “mas o dinheiro é sujo Narciso e tu o sabes bem”, diz-lhe uma voz interior! Acordou, duche rápido, fato azul posto, café na mão. Empolgado lá vai, hoje trouxe o Mercedes, pensa nos números que dirá e que terá que ligar a esposa, confirmando a suposta saúde dos seus filhos, parcos de mente, superficiais em espírito. Enganos na vida, chegará o dia que baterão com a testa na parede, há pessoas que não têm que crescer rápido de mais, não aguentam. Pensa por fim nos números que apresentará ao senhor seu pai, cabeça da economia, Imperador com escravos, pois o que é hoje o trabalhador? Conduz enquanto bebe o café, sereno nesta vida de velocidade e individualismo, cega nos seus paraísos, e desviada da racionalidade dos factos. Que se diga de mim e de Narciso, mas este, tinha o cabelo desajeitado, terá que ajeita-lo, temos que apresentar-nos nas maiores perfeições no momento da acção e do desempenho das nossas personagens, neste teatro. Fá-lo-á enquanto conduz, “cautela” dizem-lhe os seus anjos da guarda, mas à volta a cabeça escolhe muitas vezes diferente dos instintos e o carro é do futuro, não haverá problemas. Narciso olhou assim o espelho, não pousou o café. Como se tivesse três mãos, que na realidade eram dedos em dificuldade, controlando os chamados cavalos, e olha que este motor tem muitos, ajeitou-se uma e outra vez. O seu próprio sorriso seria a última coisa que viria, não se apercebeu da velocidade que ia, nem da curva acentuada, trabalhadora da Morte, que por coincidência fez um arranjinho de design e marketing, congelando-a. “Outros passarão por aqui”, assim deve pensar a ceifadora enquanto decora a seu prazer esta Terra. De Narciso Miranda sabemos que foi um pai e humano respeitador, assim esta no cemitério de Benfica, naquela lápide recheada de flores, umas tantas vivas. Os seus familiares estavam tristes, é verdade, mas também aliviados, só a Morte consegue criar ironias que nos escapam do coração. Mas Narciso esta bem, deixou-se da má vida mundana, manda cumprimentos e pede desculpa pelos incómodos causados. E esta mensagem é verdadeira, quem mo disse foi Deus!


O' Camões Preto in , "Vidas- Colectânea de Contos"

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