quinta-feira, 27 de julho de 2017

António Vieira


         Não acreditaríamos se fosse-nos dito que em pleno século tecnológico ele existisse. Sim, um homem de estatura mediana como muitos, 1,67 cm, para ser mais preciso, calvo, de nariz esticado e batatoso, meio marreco, de pigmentação duvidosa, pois havia dias em que o seu ar aparentava ser de um ibérico, outras de um magrebino ou então de um equatoriano. Porventura esta dúvida pauta-se pela pele, por vezes limpa, do mesmo. Com um manto grande e negro, que outrora fora um cortinado, que hoje naturalmente, esteja que tempo estiver, vai limpando o chão à cada passo firme que dá, de chinelos, “hawaiainas”. Descrevemos António, Vieira de apelido, um adulto de meia idade, a quem resta uma pequena e velha casa, que pertence a sua morta família há mais de 150 anos e que já tivera imensas reformulações e anexos, mas não no turno de António, guardião deste pobre espólio, que desligou-a do sistema. Sim, sem luz, gás ou água, sendo a única iluminação dada por um candeeiro da rua, a água de um poço, e o fogo, com os tristonhos ramos desflorados no chão. Dos dois quartos, sala, cozinha e casa-de-banho, restam poucos traços caracteristicamente sociativos, visto que num dos mesmos por deter um período efectivo de luz entre as 08:00 e as 15:00, tem uma horta impressionantemente edificada sobre materiais mundanos e que vão garantindo a sua sobrevivência. A sala tinha apenas uma mesa de pinheiro, datada de 1904, uma estante traçada abarrotada por livros, dos mais variados, como aliás toda a casa pelo chão, onde Platão deliciosamente dava lições a Francis Fukuyama, como a todos nós. O bem mais valioso e estimado deste ser, como já reparamos dificilmente seria ele mesmo, era um pequeno relógio de bolso, herdado geracionalmente, até ele, pois não tem filhos, acha. Com o relógio poderia controlar o seu dia, como até o quarto onde seria a sua horta, garantindo assim que não falha a hora do seu sermão diário. Sim, sozinho e num banco, num largo quase como qualquer outro, neste século, onde fileiras de pessoas, em constante e rápido movimento, ai peço perdão, formigas, não ligam a nada que ele diz. Ali fica duas horas certinhas, sem respostas, só, no eco da sua voz, dando por fim as diversas moedas que jazem nessa sua frente à Pedro, um suposto sem-abrigo, se calhar único seu amigo, familiar até!

Assim proclamava contra o mundo, os seus costumes, hábitos e mote, escrevendo por fim num diário velho, sua Magnum Opus. Daquele dia escreveu, “Dei mais moedas ao Pedro, ninguém parou, Dia 20”. "Quantos mais serão?", pensou, mas a sua missão um dia, com a teia segurará peixes, não os matará como nós, vil humanidade, deixá-los-á na água, a respirar, pois António de sobressalto, sem ar, acordava pelo menos 3 vezes por semana. Eram pesadelos dizia-lhe Pedro, porque também os tem, na rua. (António nunca convidou Pedro a juntar-se a ele). Rotineiro como sempre, estes Kantianos exacerbadores do carpe diem, que esquecem-se da parte sentimental do tempo, ia no seu 50º dia de sermão seguido, quando faltando apenas 5 minutos para terminar, um jovem roto sentou-se. António parou, não sabia o que dizer, até que o moço grita-lhe para continuar e que teve coragem para ouvi-lo por fim “MESTRE”. Escreveu 6 páginas no seu velho diário, nessa noite, sentiu. "Alguém, por fim". Exclama! E assim continuou o jovem, todos os dias ali sentado ouvia o sermão, todo ele vestido com um só manto, também acompanhado por Pedro e inevitavelmente por mais 20 tristes rostos, lamuriando as suas vivências e respondendo firmemente a este novo sábio. “Ahh, como 3 pessoas conseguem mobilizar 20, 50, 100, 1000, com esforço, suor e lunatismo”, pensou António. Dai que, no 200º dia seguido de prece, cerimoniosa, mais de 2000 pessoas estavam reunidas num culto, jamais de 2 horas, pelo menos certinhas, por vezes era o dia inteiro, a semana ou o mês. António criara uma religião, onde vestes negras, um diário sagrado com mais de 500 páginas, onde após a chegada do jovem muitos irmãos e irmãs iam sendo por ele descritas, codificando-os que nem num córtex, num só, um sonho real do seu subconsciente. António era hoje uma estrela, não de Hollywood, mas certamente daquele cinema ou colina. A sua casa tinha já sido desvendada pelos seguidores deste mestre, o seu diário replicado por um dos seus seguidores que detinha uma empresa, antes de ouvir o culto e de ter-se divorciado da mulher. “ A culpa é dela”, soltou o desgraçado por entre a multidão, em lágrimas, bêbado e sujo. Hoje anda de manto negro, mais um!

1000º dia de culto, António estava mais velho do que nunca, tendo a voz cansada e rugas que afundavam a sua cara, de forma surpreendente. Todas as suas plantas, no fundo a horta, estava morta, seca, abróticas, para alimentarem esta abrótea. Perdera tempo para cuidar da mesma, os mais de 10 mil seguidores sugaram-lhe a alma. O palco já não era um banco, era um grande altar, com vidros altos, papais para que não sofresse um papa-martír-cídio, porque Jacinta e os outros pastorinhos podiam ser canonizados, santificados em algum nome, mas este mundano jamais estaria seguro porque fazia o trabalho do Estado mais forte e perigoso do Mundo. Já não usava o relógio, agora iam buscá-lo a casa, transportavam-no até ao altar, fraco, mas limpo. Como as coisas mudam, nosso santo orador é hoje terráqueo, sente os prazeres da pele, com pele, contra pele, caindo na cama redonda, perfumada por 3 benditas irmãs. “Chiça, velho e louco, mundano”…exclamou a já apagada consciência! Como sabemos, rapidamente apareciam, as dezenas, seus bebés, santos. E assim prosseguia esta saga no seu 2000º dia de culto, jamais seguido, pois a popularidade de António não o deixava, onde mais de 30 mil seguidores de todo o Mundo viviam por ele. Viagens faria, conta bancaria abriria, seus mandamentos, de longe diário, best-seller seria, do dia, da semana, da vida!

Por fim acordou, no 2017º dia, desde que o primeiro fruto podre sujou-lhe a cara e o manto, pois na realidade era uma chuva deles, torrencial, e sentia-se exactamente igual a esse momento. Izanami e Izanagi criaram os ciclos viciosos de um ser, retornando-o a criação, a morte, porque até sozinho António acordou, onde uma luz forte que há muito não vira, reluzia num dos seus secos vasos, que ia incessantemente chamando por ele. Assim corresponde à intuição, como poucos nós fazemos no dia-a-dia nesta terráquea vida, contemplando por fim uma pequena hortelã rodeada de terra, ramos secos e folhas. “Como?” Perguntou-se. Poderia num vaso sem água, terra totalmente ela seca, provir vida? Pelo menos 1953 dias desde à última vez que vira o vaso, e no entanto aqui esta, verde e com veias azuis pequenas, uma hortelã. Ai, como este santo mundano homem esta enganado. Pois, se chove e acumula, ela, água, nossa vitalidade, encontra caminho até por fim cair e cair, eclodindo uma semente à centímetros da terra seca, morta. O padre cai em si. Ora desculpe-me, o visionário Vieira cai em si, no reflexo de um espelho do novo guarda-fato no seu quarto e chora, chora. “O que sou? Quem sou?” pergunta-se ao mesmo tempo que procura o relógio de bolso, o manto velho, os chinelos, a VIDA. Nada encontra, sai nu, correndo em direcção ao largo que fundara a sua epopeia, acompanhado por 5 mil irmãos e irmãs, que também nus, junto a si corriam sem saber o motivo. Chega cansadíssimo ao altar. “O que tem o meu corpo?” Perguntou a consciência, que devolve a bola com um amorti junto a rede da mesa de ping-pong que é a nossa sina, onde o coração não consegue responder a tempo do outro lado. Sobe ao altar e contempla 35 mil pessoas em êxtase, sem roupa, como ele. “Irmãos, Irmãs, IRMÃOS, IRMÃS” grita. “Tudo isto é errado. Por favor acordem, pois somos aquilo que inicialmente combatíamos”, diz. A multidão silencia-se deixando que se note a tarde ventosa que chegara, como um relâmpago. E como ele próprio, um relâmpago, caso na retina não tenha ficado a sua passagem visual ou o seu estrondo, “BRUMM”, rebentando a barreira do som, o silêncio termina, instalando-se um murmúrio constante entre os diversos irmãos que choravam e gritavam enquanto António mantinha-se chocado e sem perceber estas emoções. Pedro aparece por fim, hoje já limpo e bonito, acompanhado por uma senhora, que chorava compulsivamente como ele, dizendo: “ Irmãos, Irmãs…Ir..mmm…ãos, infelizmente o dia chegou. Nãoooooooo. Nãooooo, não queria, ninguém quer, mas...agarrem-no e ponham-no na Arca”. E agora António estava mais incrédulo do que nunca, enquanto 4 irmãos cautelosamente agarram-no, elevam-no, guiando-o para a Arca enquanto todos choravam, agora até António, que perguntava o que se passava, sem resposta. Estes hirtos choros davam a atmosfera um tom cerimonial, e o era de facto, pois na Arca já se sentia o calor do fogo, alto, ruidoso e triste, enquanto nosso sábio tentava fugir, gritando em vão. Chegávamos ao fim da longa caminhada até a fogueira enquanto António, louco ,chamava por Pedro perguntando-lhe o motivo daquela loucura. Assim Pedro ergue as mãos para o céu tendo a página 95 do Diário/Bíblia aberto(a) aponta para o segundo parágrafo e sofridamente exclama: “ Como aqui referes, este dia iria acontecer e que dir-nos-ias que tudo era mentira e errado. Segundo, tu próprio, não merecerias mais viver caso este dia acontecesse e por tal construístes a Arca, que guiar-te-á, a verdadeira Energia dos Universos, através das chamas que alto falam”. António não se lembrava disso, nem do resto e nem dele mesmo. Não mais gritou e de rosto trancado, triste, e enigmático é atirado para as chamas, de onde ainda ouviram-se 4 gritos de ardor e por fim sentiu-se o cheiro da sua parte física no ar. Todos choravam. Todos choravam. Todos…Até que por fim Pedro fala a multidão: “ Bendito nosso Mártir, Imortal é a sua Alma”, 35 mil em coro o aclamam, repetidamente. “Eu...Bem, NÓS, continuaremos o seu trabalho. A sua pegada é eterna em cada um de vós”. Disse o antigo sem-abrigo roto, hoje acompanhado por uma senhora. António sorriu pelas chamas, mas ninguém viu ou ouviu apesar delas falarem alto, pois bradavam aos céus, venerando o relógio de bolso do mesmo! 

O' Camões Preto in , "Vidas- Colectânea de Contos". 

quarta-feira, 21 de junho de 2017

(Re)Encontro(s)

Teu olhar,
Sinto-o, num
Piscar,
Ora teus lábios,
Mais do que no morder.


O' Camões Preto



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Escrevo,

Conto,
Segundo a segundo,
Tua chegada,
O nosso beijo.


O'Camões Preto

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Aprendiz


Sou um aprendiz no amor,
Confesso…
Distâncias criam-se,
Algumas sociais,
Nunca minhas,
Pois sou aprendiz e nesse processo erras,
Erro,
Erramos…

Por vezes, num declive artificial,
Sem forças para qualquer um,
Que o tente subir, que estafado, vai, a meio…
Sou aprendiz no amor
Quiçá na vida,
Mas subirei esse declive
Junto de ti,
Minha mestre!


O’CamõePreto   

"Capicua da minha vida"- vol.1

Meu mel
Que em tudo é sublime.
Olhos rasgados que minha alma vê,
Lábios carnudos que meu coração desarma,
Ama-me
Como as abelhas ao mel. 

O'CamõesPreto.

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Odisseia a nossa,
Amor nada brando,
Num tique-taque de memórias,
Recentemente criado,
Mas parece que sempre,
Aliás como outrora,
Noutra vida,

Apreciado

O'CamõePreto

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Esse cabelo solto,
Rebelde sobre o vento,
Leoa na savana,
Esbelta,
Em rodopios,
Num xeque-mate,
Ao meu coração

O'CamõesPreto


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Cai a noite, trémula,
Fria, melancólica.
Tenho meus pés frios,
A cama solitária,
No semblante do escuro,
Teu rosto sorriu,
O meu responde da mesma forma
A temperatura aumenta,
O dia abre
O coração dispara!


O'CamõesPreto





                                                                                                                              1

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Em reverso

É um até já,
Eu sei,
As pernas tremem,
O comboio arranca,
Fixo em ti estou,
Até ao último momento.

Sei, prontamente, que,
Regressaremos ao início deste verso,
Nosso amor, ao reverso,
Lutando, gritando,
Querendo, instante a instante,
Nós. E mais nós, e mais nós.

Egoísta este nosso ser, uno,
Busco, sigo,
No crepúsculo fino,
Teu rosto, sinalizado na bruma,
Escura e estranha
Pelo teu primaveril e doce cheiro.

Amo-te, ecoa o vento,
Respira a terra,
Brandam as árvores,
Quimeras,
Frutos únicos de nosso amor,
De regresso em reverso, neste verso!


O’ Camões Preto

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Simbiose.

Vem,

Não temas,
Não ligues a dogmas.
Beija-me e dorme,
Sob meu braço,
 Meu amor.

 Não ligues o que olhos difusos possam ver,
Invejar, nossa ligação e ternura,
Pois nossa absorvência,
Não recua, nem pisa, essas coisas obtusas,
De tal vida!

Chega mais perto,
Deixai-me sentir teu respirar,
Meu coração por ti palpitar,
Minha cabeça sob teu ombro encostar
Contigo assim fabricar, sonhos e intempéries sem fim.

 Como a nossa,
Num soneto com valsa,
Sentimento puro, sabemos!
Vem, não temas,
Já noutra vida estivemos juntos,
Eu sinto-o, com o cintilar dos teus olhos,
Que juntos aos meus,
Nosso amor vê!

 O Camões Preto











segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Narciso Miranda

A volta mantem-se a sua cabeça, torta, apesar do dia que acorda e que retorna, todos a sua rotina. Esta é a de Narciso Miranda, que é mistura de raças, semblante da beleza e do destino, homem nascido em berço de oiro e diversas vezes massajado na sua chaise-long de carvalho. Vê horas em relógios de marca e acelera em viaturas do futuro. Hoje acorda com olheiras, que criam papos sob os seus olhos verdes. A noite tinha sido longa, estamos no inverno, lembremo-nos, e da natural necessidade de aquecerem-se os pés, com alguém, num micro aquecedor debaixo de lençóis. A noite tinha sido acompanhada, três micros aquecedores aqueciam aquela cama, apesar da senhora Miranda encontrar-se em casa, supostamente tomando conta dos seus dois filhos. Naquela noite, Narciso acompanhou-se de material diferente, inteligentes no seu jogo, que em “check-mates à pastor” vão derrubando estes reis, que naquele tabuleiro nunca poderão contar com a força e versatilidade de uma rainha. Cada um desempenha um papel neste jogo, de jogadas calculadas e premeditas, crivadas de armadilhas, onde peões são sacrificados na primeira fila desta guerra entre diferentes. “Tenho reunião as 10”, exclama tonto, enquanto que os escoceses vão dançando na sua cabeça, e o terrível Tanqueray tomando conta do seu estomago, envolvendo-o numa manta de acidez. Para a cabeça terá que riscar sobre a mesa o pó da morte, branco, com a nota de 5 euros, gasta e dobrada. Chega a pensar nas diversas pessoas que a pegaram e na humildade de cada uma, “mas o dinheiro é sujo Narciso e tu o sabes bem”, diz-lhe uma voz interior! Acordou, duche rápido, fato azul posto, café na mão. Empolgado lá vai, hoje trouxe o Mercedes, pensa nos números que dirá e que terá que ligar a esposa, confirmando a suposta saúde dos seus filhos, parcos de mente, superficiais em espírito. Enganos na vida, chegará o dia que baterão com a testa na parede, há pessoas que não têm que crescer rápido de mais, não aguentam. Pensa por fim nos números que apresentará ao senhor seu pai, cabeça da economia, Imperador com escravos, pois o que é hoje o trabalhador? Conduz enquanto bebe o café, sereno nesta vida de velocidade e individualismo, cega nos seus paraísos, e desviada da racionalidade dos factos. Que se diga de mim e de Narciso, mas este, tinha o cabelo desajeitado, terá que ajeita-lo, temos que apresentar-nos nas maiores perfeições no momento da acção e do desempenho das nossas personagens, neste teatro. Fá-lo-á enquanto conduz, “cautela” dizem-lhe os seus anjos da guarda, mas à volta a cabeça escolhe muitas vezes diferente dos instintos e o carro é do futuro, não haverá problemas. Narciso olhou assim o espelho, não pousou o café. Como se tivesse três mãos, que na realidade eram dedos em dificuldade, controlando os chamados cavalos, e olha que este motor tem muitos, ajeitou-se uma e outra vez. O seu próprio sorriso seria a última coisa que viria, não se apercebeu da velocidade que ia, nem da curva acentuada, trabalhadora da Morte, que por coincidência fez um arranjinho de design e marketing, congelando-a. “Outros passarão por aqui”, assim deve pensar a ceifadora enquanto decora a seu prazer esta Terra. De Narciso Miranda sabemos que foi um pai e humano respeitador, assim esta no cemitério de Benfica, naquela lápide recheada de flores, umas tantas vivas. Os seus familiares estavam tristes, é verdade, mas também aliviados, só a Morte consegue criar ironias que nos escapam do coração. Mas Narciso esta bem, deixou-se da má vida mundana, manda cumprimentos e pede desculpa pelos incómodos causados. E esta mensagem é verdadeira, quem mo disse foi Deus!


O' Camões Preto in , "Vidas- Colectânea de Contos"